Alguns pensamentos dispersos sobre um livro que mudou a minha vida
Sobre o Pós-Escrito, de Kierkegaard
Hoje é o aniversário de publicação de um dos livros que desempenhou um papel fundamental na minha vida, o Afsluttende uvidenskabelig Efterskrift til de philosophiske Smuler ou, se preferir, o Pós-escrito conclusivo não-científico às Migalhas Filosóficas, publicado dia 27 de fevereiro de 1846 pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard.
Kierkegaard era um sujeito severamente idiossincrático (quem entendeu o trocadilho, entendeu). O “Conclusivo” no título do livro diz respeito ao fato de que o autor pensava ser esta a sua última obra, uma vez que tinha certeza que morreria ao atingir os 33 anos, o que aconteceria em maio daquele ano. Ao não morrer, ele chegou a duvidar da correção da própria data de nascimento constante na sua certidão de batismo (celebrado em um 3 de junho, veja só…).
Embora algumas coisas que eu diga aqui possam ser disputadas, é fato que o Pós-escrito é a obra mais filosoficamente sofisticada de Kierkegaard e, por que não dizer, seu testamento filosófico mesmo. Henri-Bernard Vergote, um dos grandes intérpretes da obra do dinamarquês, tem uma boa metáfora para o livro: ele é uma espécie de dobradiça; articula, coordena e sintetiza tudo o que foi escrito antes, bem como toda a produção posterior já que, tendo ficado vivo por ainda mais nove anos escreveu mais um tanto.

O livro tem especial sentido para mim porque é a principal obra ao redor da qual orbita minha tese de doutorado, defendida, vejam só, há dez anos. Não é uma hipérbole dizer que ter descoberto o Pós-escrito - cujos primeiros excertos li na excelente coleção de trechos selecionados e traduzidos por Ernani Reichman, num volume encontrado por acaso na biblioteca da PUC-SP enquanto fazia o mestrado - mudou minha vida. A partir desses primeiros trechos fui ao livro inteiro, primeiro na edição das Oeuvres Complètes, da Orante, que também tive a sorte de encontrar na mesma biblioteca. E minha cabeça explodiu. E realmente decidi fazer o doutorado sobre Kierkegaard, o que me levou a me mudar para o Rio Grande do Sul
A ideia inicial era fazer um projeto de doutorado sobre o conceito de repetição, que é trabalhado por Kierkegaard em um livro intitulado, justamente, Repetição. Mas no Pós-escrito descobri um Kierkegaard com uma agudeza filosófica digna de um medieval, com distinções conceituais e problemas filosóficos que nada deviam em rigor a qualquer filósofo tido como sério, mas que ao mesmo tempo tratava de questões profundamente existenciais que me ocupavam inteiramente àquele momento.
Sendo honesto, até a minha tese, não havia nada em português que se debruçava sobre o Pós-escrito como se deve. As razões são muitas e vão desde a ausência de uma tradução para o português, o que só foi remediado justamente quando Álvaro Valls, meu orientador e grande tradutor de Kierkegaard, decidiu verter a obra para a última flor do Lácio exatamente enquanto eu fazia a minha tese, até o fato de que o livro vai de análises da Ciência da Lógica de Hegel ao problema da beatitude eterna no Cristianismo. Kierkegaard chegou a pensar em publicá-lo, inclusive, sob o título de Problemas lógicos. Essa combinação não é propriamente atrativa para se formar um best-seller. Na verdade, mesmo quando lançado, o livro não gozou de uma vívida aclamação. Como vocês podem ver abaixo, em uma charge que do jornal Aftenbladet da época, já então o livro não parecia muito sedutor…
Mas para mim a coisa é totalmente diferente. O Pós-escrito é um manancial do qual, por quatro anos, diariamente sorvi de uma riqueza filosófica brutal ao mesmo tempo em que fruía do lirismo da escrita de Kierkegaard e de sua sabedoria em sentido pleno. O livro me levou a me afundar em virtualmente todos os outros escritos de Kierkegaard, mas também em Aristóteles, São Tomás, Suárez, Descartes, Leibniz, Spinoza e a gastar preciosos anos com Kant, Hegel, Trendelenburg, Schelling e todo o contexto filosófico do século XIX. O livro, que ironicamente é apenas um pós-escrito a outro, o Migalhas Filosóficas (publicado dois anos antes), tem cinco vezes o tamanho do “principal”. E posso dizer, sem dúvida, que ainda é um livro que precisa ser lido, mesmo entre os estudiosos do dinamarquês.
Para atestar o que digo, fica aqui um dos meus trechos favoritos:
Existir como este ser humano individual não é uma existência tão imperfeita quanto, por exemplo, ser uma rosa. […]. A filosofia explica: pensar e ser são um – mas não em relação àquilo que é o que é apenas por existir (at være til), como, por exemplo, uma rosa, que não contém em si nenhuma ideia, e, portanto, não em relação àquilo em que mais claramente se percebe o que significa existir (*existere*) em contraste com pensar; mas pensar e ser são um em relação àquilo cuja existência é essencialmente indiferente, porque é tão abstrato que possui apenas uma existência no pensamento. Mas, dessa forma, omite-se uma resposta ao que de fato foi perguntado: existir como um ser humano individual. Em outras palavras, isso significa não ser (Være) no mesmo sentido em que uma batata é, mas também não no mesmo sentido em que a ideia é. A existência humana contém uma ideia dentro de si, mas, ainda assim, não é uma existência-ideia (Idee-Existents).
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