Contra o nivelamento das diferenças
Ou o que ainda devemos aprender com Cassirer e Heidegger
Quem está por aqui há mais tempo deve se lembrar das minhas diversas menções ao grande encontro de Davos. Não este que se repete todo ano, em que se reúne gente parcamente inteligente para fingir que se está realmente discutindo coisas muito relevantes, mas àquele de março-abril de 1929, durante a segunda edição do Internationale Davoser Hochschulkurse, no qual encontraram-se e debateram Cassirer e Heidegger (o que claramente prova que Davos já teve convidados muito mais ilustres). Há rios de tinta escritos sobre o debate que revolvia formalmente em torno da questão - e da correta interpretação kantiana dela - “O que é o ser humano?”. Aqui mesmo fiz uma sequência de posts com notas para a discussão com alguns alunos sobre uma das principais análises do acontecimento.
Mas mesmo quem não conhece mais a fundo a história do encontro e as suas particularidades e consequências teoréticas, e mesmo históricas, pode imaginar o quanto o debate entre Ernst Cassirer e Martin Heidegger, dois dos maiores pensadores que respiraram o ar do século XX, pode ter sido relevante. Sobre tudo isso, indico primordialmente os livros acima. Mas não é sobre nenhum aspecto filosófico específico que quero tratar neste texto, mas sim de algo de mais geral que, nas diversas leituras e releituras que fiz da transcrição (há ótimas traduções aqui e aqui), sempre me chamou atenção. Antes, para quem não está suficientemente famíliarizado, é importante dizer que Cassirer e Heidegger não apenas discordavam sobre o tema específico da discussão, a saber, o que seria a correta interpretação de Kant quanto ao objetivo geral de seu projeto e ao lugar e escopo da razão humana, mas hipostasiavam concepções diametralmente opostas do que deveria ser a própria filosofia (em grande parte apoiados em suas interpretações conflitantes sobre Kant).
Portanto, ao final do debate de 26 de março de 1929, os dois filósofos só haviam feito avançar suas diferenças. Assim, Heidegger então afirma que
Não é útil ao trabalho objetivo se nós chegarmos a um nivelamento. Ao contrário, porque só por meio do rigor na evidenciação do problema, este obtém clareza […].
Parece apenas a constatação da aporia à qual os dois pensadores chegaram, mas já há aqui bem mais do que isso. A afirmação de Heidegger reitera a importância da evidenciação do problema como tarefa realmente essencial à reflexão filosófica. E, como se verá adiante, talvez a manutenção e a sustentação do problema como seu momento fundamental. A partir daí seguem as duas últimas falas dos dois das quais, abaixo, reproduzo alguns trechos:
Cassirer: Também eu sou contra um tal nivelamento. O que nós queremos e devemos aspirar, e que também podemos alcançar, é que cada um, ao permanecer em sua posição, não veja com isso somente a si mesmo, mas também o outro. Que isso deva ser possível, parece-me residir na ideia do conhecimento filosófico em geral, em uma ideia que Heidegger também reconhece. Eu não quero fazer a tentativa de retirar Heidegger de sua posição [Position] e coagi-lo a outra perspectiva, mas quero somente tornar sua posição compreensível para mim. Eu creio que isso já tornou mais claro onde reside a oposição. Porém, não é frutífero acentuá-la sempre novamente. Nós estamos em uma posição na qual pouco é obtido por meio de meros argumentos lógicos. Ninguém pode ser forçado a assumir essa posição, e nenhuma coação através de argumentos puramente lógicos pode obrigar alguém a começar pela posição que, para mim, parece ser a essencial. Aqui estaríamos nós submetidos a uma relatividade. “Que tipo de Filosofia se escolheria depende do tipo de ser humano que se é”. Mas nós não podemos permanecer junto a essa relatividade, na qual o ser humano empírico seria colocado no centro. E foi muito importante o que Heidegger disse por último.
Sua posição [Stellung] também não pode ser antropocêntrica, e se ela assim não quer ser, eu pergunto, onde reside então o centro comum em nossa oposição. Que este não pode estar no empírico, está claro. Nós devemos, precisamente na oposição, procurar novamente pelo centro comum. E eu digo, nós não precisamos procurar. Pois nós temos esse centro, e, na verdade, isso é assim porque há um mundo humano objetivo e comum, no qual a diferença dos indivíduos não foi, então, suspensa de modo algum, mas com a condição de que aqui, então, as pontes de indivíduo para indivíduo foram lançadas. Isso se apresenta repetidamente para mim no fenômeno originário da linguagem. Cada um fala sua linguagem, e é impensável que a linguagem de um seja traduzida para a linguagem do outro. E assim mesmo nos entendemos, através do meio [medium] da linguagem. Há algo assim como “a” linguagem. E algo assim como uma unidade acima da infinidade dos diferentes modos de fala [Sprechweisen]. Para mim, aí reside o ponto decisivo.
Heidegger: […] A mera mediação nunca será produtiva para avançar. É a essência da filosofia enquanto questão [Angelegenheit] finita do ser humano, que ela esteja restrita à finitude do ser humano, tal qual nenhuma outra realização criativa do ser humano. Porque a Filosofia perpassa a totalidade e o mais elevado ser humano, a finitude deve se mostrar de modo totalmente radical na Filosofia. É importante que os senhores levem convosco uma única coisa dessa nossa confrontação: não se orientem pela diversidade de posições dos seres humanos filosofantes, e que os senhores não devem se ocupar com Cassirer e com Heidegger, mas devem chegar ao ponto de pressentir que nós estamos a caminho de tomar seriamente mais uma vez a questão central da metafísica. Gostaria de indicar aos senhores o fato de que aquilo que os senhores estão vendo aqui em pequena medida, a diferença dos filósofos na unidade da problemática, pode se expressar de maneira totalmente diversa em um âmbito maior. O essencial na confrontação com a história da filosofia é precisamente o fato de ser o passo inicial para o interior da história da filosofia o libertar-se da diferença entre as posições e os pontos de vista; ver como justamente a distinção de pontos de vista é a raiz do trabalho filosófico.
É possível fazer, apenas dessas duas falas, um curso todo inteiro. Mas para além disso, há aspectos com os quais podemos e devemos aprender de inúmeras e variadas maneiras:
Como começa concordando Cassirer, o nivelamento absoluto das diferenças teóricas não é, de fato, desejável. O que se deve almejar é que, cada um, mesmo permanecendo em sua própria posição, consiga considerar o outro e sua posição contrastante. No mundo atual isso não apenas parece difícil, parece idílico, utópico. Mas como afirma acertadamente Cassirer, é aí que reside a própria ideia de conhecimento filosófico. A identificação de um problema, seguida inclusive da constatação do desacordo sobre qual é a melhor perspectiva de solução, que é fonte e origem de diversos problemas filosóficos, é a natureza íntima das nossas grandes questões humanas. Que existam conceitos essencialmente constestados é o motor imóvel do pensamento humano;
Por conta disso, as discussões não devem ser sempre a respeito de demover alguém de sua posição original. O que me lembra que há não muito tempo a internet e o debate público brasileiros foram infestados pela síndrome da refutação. A tudo se tratava de empreender refutações cabais, faraônicas, acompanhadas da devida humilhação pública. Confesso que eu mesmo já sofri deste mal, mas estar anos a fio sobrevivendo na academia me fez também este bem danado. Novamente, a manutenção da tensão teorética deve ser vista, em mais vezes do que gostamos de admitir, como um corolário desejável das grandes discussões;
O que nos traz para outra das constatações de Cassirer sobre o fato de que nem sempre a argumentação é capaz de conduzir a mudanças de posição. Aqui se deve ter cuidado: geralmente desistimos da argumentação e da lógica cedo demais em nossos debates. O ponto importante do que diz Cassirer é que, por vezes, posições contrastantes estão enraizadas em opções fundamentais, as quais não são esposadas simplesmente porque elas são a conclusão do melhor silogismo, mas porque percebemos que devemos nos comprometer com elas por que fazem sentido em uma dimensão mais universal e por isso mais abrangente;
Nessa manutenção da tensão entre opções fundamentais - se se quiser, entre Weltanschauungen - ainda é possível encontrarmos um solo comum, ou como o próprio Cassirer gosta de dizer, citando Heráclito, um koinon kosmon, um universo comum. Isso porque há, para além dos nossos mundos específicos, um cosmos geral no qual todos nós estamos aí, com as nossas visões de mundo e nossas opções fundamentais;
Tudo o que foi dito por Cassirer é repetido e amplificado na última fala de Heidegger. Mas Heidegger reforça um aspecto não apenas central da sua filosofia, mas nuclear inclusive para sua interpretação de Kant, que é a finitude humana. Do fato de que somos finitos, há uma limitação intransponível à nossa racionalidade ainda que tudo isso seja inescapável ao paradoxo de que é ela própria, a razão, a única que pode dar-se conta de suas próprias fronteiras. É por isso que Heidegger pode afirmar que “a distinção dos pontos de vista é a raiz do trabalho filosófico”. Por isso, o simples aplacar infantil das diferenças ou mesmo o não-reconhecimento do diferente como sendo propriamente legítimo equivale, portanto, à morte do pensamento.
Para mais Cassirer e Heidegger, clique aqui e aqui.
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PS: Nos próximos dias embarco para Portugal para participar de dois eventos que muito me alegram. Conversarei, em uma mesa do 54º Congresso da IPA, sobre a crise global e o nosso futuro, e terei o prazer de apresentar uma parte da minha pesquisa atual sobre inferencialismo e justificação, aqui no contexto da epistemologia do raciocínio clínico, no incrível 4th International Conference of Ethics and AI. Espero que nos dois nós nos mantenhamos longe do nivelamento.
O curioso é que haja no debate atual tanto acusações de relativismo quanto de "universalismo" (e etnocentrismo). Ainda bem que Gadamer nos ensinou bem claramente que o entendimento (e "fusão de horizontes") só é possível se reconhecemos as outras posições como "anormais". A tensão é essencial, como bem pontuaste. :)