Duas citações de Sellars sobre a natureza da filosofia
Ou como Sellars encontra Heráclito sobre o futuro da filosofia
Quem quer que já tenha feito alguma aula comigo em que eu comento sobre a natureza da filosofia já deve ter me visto comentar que julgo que a abertura do excelente Philosophy and the Scientific Image of Man, do gigante americano Wilfrid Sellars (1912-1989), é uma das melhores descrições do que penso ser o objetivo - e o objeto - da filosofia:
“The aim of philosophy, abstractly formulated, is to understand how things in the broadest possible sense of the term hang together in the broadest possible sense of the term. Under 'things in the broadest possible sense' I include such radically different items as not only 'cabbages and kings', but numbers and duties, possibilities and finger snaps, aesthetic experience and death.”
Note-se que mais do que pretender oferecer uma definição de filosofia, Sellars limita-se a descrever seu objetivo e, aqui uma derivação minha, explicita seu objeto, a saber, o entendimento de como os elementos que compõem nossa experiência (e aqueles que estão para além dela), compreendida em sua máxima amplitude e diferenciação, se relacionam na articulação do que chamamos realidade. Uso “entendimento” - mantendo a linha do “understanding” de Sellars - porque penso obviamente na clássica distinção de Dilthey, traçada primeiramente em seu Ideias para uma psicologia analítica e descritiva (1894), entre Erklären (explicação, explicitação) e Verstehen (entendimento). Ali, diz Dilthey, ““Explicamos através de processos puramente intelectuais, mas entendemos através da cooperação de todos os poderes da mente ativados pela apreensão” (1894/SW.II, 147). Desenvolver essa distinção é tema para outro post, mas a ideia aqui é que explicamos fenômenos (naturais) subsumindo-os logicamente a leis gerais, mas entendemos fenômenos (históricos, sociais, políticos, culturais etc.) articulando-os numa rede de sentido que demanda, para além do procedimento lógico-dedutivo, habilidades hermenêuticas, isto é, de interpretação. E é apenas assim que podemos compreender como “coisas” tão díspares como números, leis, a morte, o mal e o computador no qual escrevo se relacionam para compor o que experimentamos como realidade.
Mas alguns parágrafos abaixo, Sellars nos fornece outra pequena pérola sobre a natureza da filosofia:
“It is therefore, the 'eye on the whole' which distinguishes the philosophical enterprise. Otherwise, there is little to distinguish the philosopher from the persistently reflective specialist.”
Embora seja quase um corolário da primeira, a ênfase aqui não é no objetivo - e no objeto - da filosofia, senão que no aspecto que a diferencia das outras empresas intelectuais, a saber, “o olho no todo”. Desde o seu início na Magna Grécia do século VII a. C., a filosofia sempre teve um “olho no todo”. O maravilhoso fragmento 50 de Heráclito (que transcrevo aqui de cor porque desde quando o li pela primeira vez, na agora longínqua graduação, nunca mais o esqueci):
“Não de mim, mas do lógos tendo ouvido, é sábio homologar que tudo é um.”
O fragmento de Heráclito vale um post só pra ele (vale? Digam nos comentários) e é evidente que poderíamos contrastá-lo com a crescente especialização que a história da filosofia conheceu. Mas parece que aqui está em germe o que Sellars, mais de 2000 anos depois, reafirma sobre a marca distintiva da filosofia: seu olhar holístico. Frente à nossa crise das humanidades que também é a nossa crise da cultura, Sellars e Heráclito apontam o caminho correto.
Também esperando o comentário sobre o fragmento de Heráclito, em especial o sentido de "homologar".
Sensacional. Esperando o texto sobre Heráclito ansiosamente, rs.