Hoje pela manhã tive a oportunidade de ter um excelente médico intensivista e especialista em cuidados paliativos falando aos meus alunos da Medicina. O tema era precisamente problemas bioéticos em cuidados paliativos. Para além das questões mais evidentes relacionadas aos princípios, manejo e decisões, apontei outros aspectos que julgo fundamentais, mas que na maior parte das vezes simplesmente não aparecem no horizonte de questões a serem refletidas, ainda que sejam essenciais inclusive à ação e à performance do médico. Quero fazer aqui algumas observações sobre as razões pelas quais isso acontece, bem como apontar quais são essas questões e como elas se articulam com problemas mais reconhecíveis - tanto pelo senso comum quanto pelos profissionais da saúde.
A filosofia lida essencialmente com problemas (ao menos de três, formas, mas isso é tema para outro post). E há problemas filosóficos que atravessam a medicina e se caracterizam como um subgrupo de problemas que afetam outras áreas e que têm duas características essenciais:
1. São problemas que, embora afetam os conceitos e a performance dependente desses conceitos no interior da medicina,
2. Não podem ser dissolvidos, subsumidos ou resolvidos exclusivamente pela metodologia da medicina;
Contudo, há uma concepção geral extremamente assentada - no senso comum, mas principalmente entre médicos e outros profissionais da saúde - acerca das relações possíveis entre filosofia e medicina que termina por condicionar inclusive o escopo de problemas possíveis nesse campo, a saber, de que todas as intersecções e interações existentes - ou ao menos as relevantes - entre filosofia e medicina só se dão no domínio da “filosofia prática”, isto é, no âmbito da ética e da bioética (deixando de lado aqui problemas políticos e econômicos). Nesse ponto, alunos de medicina e seus professores médicos têm, inicialmente, a mesma concepção. Não haveria espaço para algo como uma filosofia da medicina (ou outras relações, como aponta PELLEGRINO, 1986. Tal concepção limita, a priori, a própria possibilidade de identificação de outros problemas filosóficos que, segundo a definição que dei acima, podem impactar os conceitos e a performance da medicina sem que possam ser resolvidos pela aplicação dos métodos da própria medicina;
Resultado do ponto anterior é que a imensa maioria das pesquisas e produções científicas - 75% dos artigos e livros publicados - sobre a intersecção entre filosofia e medicina, segundo a análise de STEMPSEY, 2008 - é sobre problemas éticos e apenas uma parcela pequena sobre outras dimensões de problemas mais próprios à “filosofia teorética”, isto é, epistemologia, metafísica, lógica, linguagem etc.
No entanto, essa assimetria entre os tópicos nem de longe é o principal problema. Ocorre que aquela concepção geral exposta acima impede que se vejam as conexões, os pressupostos e as consequências, inclusive bioéticas, de problemas teoréticos, uma vez que a relação entre “conceitos e performance” em qualquer atividade prática, o que obviamente inclui a medicina, depende de opções, pressupostos e comprometimentos epistemológicos;
O caso paradigmático, a meu ver, o que acontece no raciocínio clínico. RC pode ser definido, grosso modo, como o processo pelo qual um médico coleta, analisa e articula informações em sua relação com o paciente, a fim de oferecer diagnósticos e manejos a um paciente individual. Ora, como se pode ver, RC é essencial à atividade médica. No entanto, ele é geralmente entendido como consistindo simplesmente na semiotécnica - conjunto de técnicas para identificar sinais e sintomas. Essa sinédoque, ou seja, essa redução do todo a sua parte deixa de fora um elemento teorético fundamental ao RC que, por sua vez, tem inúmeros desdobramentos práticos, a saber, o problema da justificação no RC;
Ficando apenas nas consequências práticas mais sensíveis, pense-se que o comércio de razões, isto é, pedir e fornecer razões (Cf. CASSIRER; BRANDOM) é essencial para inúmeras ações médicas derivadas do RC: explicar o diagnóstico ao paciente ao à família, explicitar as razões para um diagnóstico diferencial e o eventual descarte de hipóteses, a explicação e sustentação da escolha de um manejo em detrimento de outros, uma eventual defesa quanto à legalidade de certos procedimentos, uma possível defesa frente a um questionamento legal ou institucional frente a um erro médico etc. Sobre este último ponto, basta dizer que 10% de todas as mortes e/ou eventos hospitalares adversos no mundo são causados por problemas relacionados ao Raciocínio Clínico (cf. BALOGH; MILLER et al., 2015). Evidentemente, os problemas da dimensão heurística da justificação, sua lógica, sua linguagem, seus conceitos e distinções etc. adicionam diversas outras camadas, mas aqui já parece ter ficado claro como limitar o horizonte de problemas filosóficos da medicina às questões éticas pode ser terrivelmente danoso.
*Em breve, um post (aos assinantes) com uma pequena bibliografia sobre filosofia da medicina com alguns comentários.
Muito bom, Gabriel. Aguardando o post com a bibliografia.