Há alguns meses encontrei, por acaso, um artigo na Genome Biology escrito por dois cientistas - Itai Yanai (NYU) e Martin Lercher (Heinrich Heine Universität) - sobre o que os dois chamam de o “dilema do expert” e, ao mesmo tempo, sobre a necessidade de resolver o tal dilema de uma maneira que os dois autores chamam de uma espécie de espírito de Renascença; de fato, o artigo é intitulado Renaissance minds in 21st century science.
O problema inicial - o tal dilema do expert - consiste no fato de que, segundo a meta-análise feita pelos autores, quando especialistas em uma determinada área expõem-se a ideias, tese e posições de áreas distintas, a qualidade e a relevância dos seus trabalhos tende a aumentar. Contudo, os dois notaram igualmente que o que pode ser visto pelos seus pares especialistas como um “excesso” de interdisciplinaridade acarreta perda de confiança, prestígio e impacto. Assim, os autores propõem que há um espectro “ótimo” de abertura e interação para com outras disciplinas que incrementa a criatividade dos pesquisadores e a qualidade do trabalho especializado. É precisamente o que chamam de “mente renascentista”.
Em suas palavras:
To be most creative, we may be best off cultivating interests in many areas, much like Renaissance thinkers such as Leonardo da Vinci or Galileo Galilei.
A proposta é, então, que o pesquisador ou cientista deve ser “Expert by day, Renaissance mind by night”.
Mas como Yanai e Lercher indicam no artigo, a distinção entre uma ciência diurna e uma ciência noturna não é original. O responsável pelas imagens é o médico e biólogo francês e ganhador do Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1965, François Jacob.
A distinção de Jacob aparece em seu livro de 1997, La Souris, la Mouche et l’Homme (O rato, a mosca e o homem):
E, no entanto, ao olhar mais de perto para “o que os cientistas fazem”, você pode se surpreender ao descobrir que a pesquisa, na verdade, compreende tanto a chamada ciência diurna quanto a ciência noturna. A ciência diurna coloca em ação argumentos que se encaixam como engrenagens, resultados que têm a força da certeza. Sua disposição formal é tão admirável quanto a de uma pintura de da Vinci ou uma fuga de Bach. Pode-se passear por ela como em um jardim francês. Consciente de seu progresso, orgulhosa de seu passado, segura de seu futuro, a ciência diurna avança na luz e na glória.
Por outro lado, a ciência noturna vagueia às cegas. Ela hesita, tropeça, recua, transpira, desperta sobressaltada. Duvidando de tudo, está continuamente tentando encontrar-se, questionar-se, recompor-se. A ciência noturna é uma espécie de oficina do possível, onde se trabalha o que se tornará o material de construção da ciência. Onde as hipóteses permanecem na forma de pressentimentos vagos e impressões nebulosas. Onde os fenômenos ainda não passam de eventos isolados, sem conexão entre si. Onde o desenho dos experimentos mal começou a tomar forma. Onde o pensamento percorre caminhos sinuosos e vielas tortuosas, na maioria das vezes sem levar a lugar algum. À mercê do acaso, a mente se debate em um labirinto, inundada de sinais, em busca de um indício, um aceno, uma conexão inesperada. Ela circula como um prisioneiro em sua cela, procurando uma saída, um vislumbre. Oscila interminavelmente entre a esperança e a decepção, entre a exaltação e a melancolia. Não há como prever se a ciência noturna algum dia se tornará ciência diurna; se o prisioneiro sairá da escuridão. Quando isso acontece, é pura coincidência— um capricho. . (François Jacob, Of Flies, Mice, and Men, 126)
As imagens e os adjetivos de Jacob, além de serem quase líricos, são autoexplicativos e dispensam grandes adições. Afinal de contas, é um cientista Prêmio Nobel apontando para o que, em geral, é uma dimensão tão desconhecida quanto essencial do fazer científico. Para mim, bastam dois comentários:
O rigor e o método atribuídos às ciências não apenas não são adversários de uma reflexão de tipo filosófico, como não podem senão ser nutridos por ela. Seja pelo fato de que nem sequer existem observações sem compromissos teóricos que lhe sejam anteriores - assunto para um próximo post -, seja porque o horizonte da produção científica só pode ser inteligível sobre um pano de fundo de expectativas filosóficas, como o valor intrínseco do avanço do conhecimento ou o imperativo moral da mitigação do sofrimento humano;
A distinção de Jacob ressalta um traço geralmente esquecido da pesquisa científica, a saber, sua frutuosidade intrínseca, a ser perseguida também de forma independente de sua utilidade. A passagem da ciência noturna, marcada pelo desejo de conhecer ou resolver enigmas, para a ciência diurna é, como afirma Jacob, “uma coincidência” e “um capricho”. Fazer ciência é, também - e, talvez, mais essencialmente -, buscar o saber para fugir da ignorância, como dizia Aristóteles, porque isso é um bem humano em si mesmo.
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Pois é.... eu penso que são lados de uma mesma moeda. Em minhas "investigações científicas" primeiro a entrar em cena é cientista noturno, depois o diurno.... hehehe