Não me interessa aqui refazer todo o percurso, em especial a partir da filosofia moderna, que foi paulatinamente aproximando e identificando conhecimento e evidência. Contudo, tal processo não apenas é um fato, como está por baixo e por trás de grande parte da nossa visão de mundo. É o que impulsiona tanto a confiança quanto o prestígio social das ciências naturais e, por sua vez, a suspeita epistêmica e social das humanidades. Uma boa olhada na confiança sobre a ideia de evidência em medicina já é suficiente para perceber o fenômeno em ponto pequeno. Entretanto, o que quero aqui é apenas apontar para outro caminho que se mostra possível mesmo na filosofia mais estrita.
Mesmo sem remontar às bases mais fundamentais, creio ser justo apontar para a posição de W. K. Clifford, em seu clássico artigo "The Ethics of Belief" (1877) , como sendo, se não um ponto de partida mais recente de tal posição, ao menos uma boa síntese dela. Com o famigerado exemplo que abre o artigo, de um dono de um navio que decide colocar a nau carregada de imigrantes em alto-mar mesmo sabendo que uma tormenta estava por vir, Clifford traça a relação que parece selar de uma vez por todas o peso e a importância da relação entre saber e dever: dadas as evidências sobre o mau tempo, o proprietário tinha o dever moral de não colocar o navio em viagem, ou seja, nas palavras do próprio Clifford,
To sum up: it is wrong always, everywhere, and for anyone, to believe anything upon insufficient evidence. (p. 5)
Daqui para frente fica fácil ver uma linha de argumento: não apenas há um imperativo epistêmico para não sustentarmos crenças que não estejam baseadas em evidências, mas há também um imperativo moral. Com isso, haveria então ainda outra camada de pressão contra a manutenção de crenças - e de ações derivadas de tais crenças - sem evidências que as sustentem. Como fica claro, isso serviria tanto para coisas triviais quanto para crenças mais sofisticadas tendo como exemplo do próprio artigo de Clifford, a "providência divina".
Tudo pareceria muito bem se não houvesse alguns probleminhas. Em primeiro lugar, o conceito de "evidência" não é, ele mesmo, evidente. Chamamos de "evidência" tipos bem distintos de justificação de crenças. Nas ciências formais, como na matemática e na lógica, as evidências são de um tipo bem diferente do que denominamos evidências em ciências empíricas. Poderíamos inclusive inserir distinções entre as diversas ciências empíricas e, também, a medicina. O que significaria, então, "evidência insuficiente" em absoluto?
Para além disso, há os argumentos clássicos contra esse tipo de perspectiva. Se por um lado temos evidência direta de que temos algo como uma vida mental, não temos qualquer evidência de que há outras mentes - e não robôs ou autômatos emulando algo como mentes - nas outras pessoas. Não há nenhuma justificativa direta para a existência de outras mentes a não ser a similaridade com a nossa própria vida mental; as outras pessoas parecem estar performando a mesma coisa que nós, que temos mente, fazemos. Disso obviamente não se segue que elas possuem mente como nós. O mesmo ocorre quanto ao passado. Como nos lembra Russell, em The Analysis of Mind, não é uma impossibilidade lógica que o mundo tenha sido criado há cinco minutos com pessoas que têm, em si, memórias totalmente irreais sobre um passado que nunca aconteceu. Dito de outro modo, não temos evidência alguma sobre o passado para além de indícios. Se quisermos ir além, mesmo aquilo a que chamamos de evidência empíricas estão atravessados de problemas perceptuais, para não dizer nada sobre os gloriosos inobserváveis na física.
Isso significa que há, para usar o vocabulário de Alvin Plantinga, um sem número de crenças básicas - como a pressuposição de que haja outras mentes além da minha - das quais não temos evidência mas que claramente constituem certo tipo de conhecimento e, mais do que isso, fornecem bases razoavelmente seguras para inferirmos outras crenças e basearmos nossas ações. Dito de outro modo, não é absolutamente irracional ter e sustentar certas crenças mesmo sem evidências que as sustentem. Em parte, é isso o que Michael Huemer chama de Phenomenal Conservatism, cuja fórmula básica (que você encontra já no início deste ótimo paper) é:
If it seems to S that p, then, in the absence of defeaters, S thereby has at least some degree of justification for believing that p.
Em outras palavras, o que Huemer defende é que, se não há contradições explícitas ou evidências frontalmente contrárias a uma crença "p", o sujeito tem ao menos algum grau de justificação para crer em "p" ainda que não haja evidências que a sustentem. De certa forma, Huemer está advogando certo princípio de prudência epistêmica que não apenas é interessante em si, como posição filosófica, mas é extremamente pragmática frente ao que disse acima.
Uma parte enorme do que pensamos e fazemos todos os dias repousa muito mais sobre hábitos e inferências materiais pragmaticamente bem sucedidas do que sobre nosso conhecimento de evidências. E isso porque, na imensa maioria das vezes, não temos nenhuma razão suficiente para duvidar delas. Além do mais, tais crenças básicas são as que realmente preenchem o sentido das nossas vidas e das nossas ações; afinal, qual evidência temos em favor da ideia de que devemos ajudar quem necessita ou de amar a quem amamos? Qual evidência temos sobre o sentido que damos às nossas vidas, para além das nossas próprias convicções?
PS. Você também pode pensar sobre toda essa discussão filosófica lendo o conto "The Spinoza of the Market Street", de Isaac Bashevis Singer.