A relação entre “filosofia” e o “público”, entendido como o grande número daqueles que não se dedicam à filosofia, é e sempre foi conturbada. Como nos contam Platão e Aristóteles, já com Tales de Mileto, o primeiro dos filósofos gregos, é possível ver que o público em geral tem, para dizer o mínimo, certa suspeita em relação ao filósofos, e estes, também para ser modesto no linguajar, têm ao menos certo desprezo pelo que julga ser o populacho. Que aqui e acolá surjam, na história da filosofia, filósofos que desejam enfatizar a importância do “senso comum” é apenas a exceção que confirma a regra. As duas histórias mais tradicionais recolhidas são boas demais para não serem citadas aqui.
Platão, no seu Teeteto, menciona, justamente no contexto em que Sócrates aponta para a dita alienação do filósofo em relação ao que se passa na cidade, o famigerado caso de Tales e a mulher trácia:
Foi o caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se passava no céu mas não via o que estava junto dos próprios pés. Essa pilhéria se aplica a todos os que vivem para a filosofia.
Realmente, um indivíduo assim alheia-se por completo até dos vizinhos mais chegados e desconhece não somente o que eles fazem como até mesmo se se trata de homens ou de criaturas de espécie diferente. (PLATÂO, Teeteto, 174a)
Já Aristóteles reconta outra historieta de Tales, agora com o primeiro dos filósofos vindo à forra:
Tomemos como exemplo o que se conta acerca de Tales de Mileto: o estratagema que usou para adquirir riqueza, ainda que atribuido à sua sabedoria, não passa da aplicação de um princípio geral. Consta que o censuravam por ser pobre, atribuindo isso à inutilidade da filosofia. O facto é que, devido aos seus conhecimentos de astronomia, previu a proximidade de uma boa colheita de azeite; quando ainda era Inverno, alugou com o pouco dinheiro que tinha todos os lagares de Mileto e Quios, gastando apenas uma pequena soma, já que não havia outras ofertas mais avultadas. Quando chegou o tempo da colheita, e porque muita gente acudiu ao mesmo tempo e com urgência à busca de lagares, arrendou-os ao preço que bem entendeu, não só obtendo uma soma elevada de dinheiro como provando que era fácil, para os filósofos, tornarem-se ricos se assim o desejassem, embora não fosse essa, de facto, a meta das suas aspirações. (ARISTÓTELES, Política, 1259a)
Assim, o fato é que a filosofia está em uma permanente tensão - ou crise - (veja-se o excelente Permanent Crisis, de Paul Reitter e Chad Wellmon) em relação à sociedade . Não é por acaso que Sócrates, que chama a si mesmo (no Teeteto) e é chamado (no Górgias) de átopos (estranho, absurdo, literalmente “sem lugar”), é o grande arquétipo do filósofo; o filósofo e o que ele faz é um ornitorrinco. É um misto de preocupações grandes e abstratas, mas também saber “descer” a questiúnculas cotidianas e ver ali problemas sem os quais todos passavam muito bem, obrigado, até então. Portanto, sob certo aspecto, tanto o “público” quanto os filósofos gostam da ideia de estarem apartados um do outro. Contudo, por outro lado, os dois sabem que, de certa forma, se beneficiam dessa relação. Afinal, o filósofo, mesmo quando está suspenso do chão em um balão, tal como Aristófanes põe Sócrates no seu delicioso As nuvens (que, aliás, é para Kierkegaard a descrição mais fiel do Sócrates histórico), cumpre a função social de ser o átopos.
Por isso, quero dizer que creio, seguindo o adágio hegeliano de que cada tempo tem as suas demandas filosóficas, que a filosofia não apenas pode ter, mas deve assumir uma tarefa pública. É claro que, então, o conteúdo do que significa essa tarefa e, portanto, o sentido da expressão “filosofia pública” precisa ser aclarado. Mas um dos pontos centrais deste texto é que não acho que seja nem sequer proveitoso tentar estabelecer uma definição clara e distinta do que isso seja. Penso sim, contudo, que algumas de suas características podem ser indicadas.
A primeira delas é que não se pode esquecer que a filosofia feita intramuros, na universidade, é também, de certa forma, filosofia pública. Se não se vê claramente a relação entre o que fazemos nos departamentos e nas publicações específicas de filosofia com a sociedade em geral ou com o gênero humano como um todo, o problema pode ser de comunicação ou consequência da progressiva especialização do conhecimento - que torna esotéricos os conhecimentos de ponta -, mas não de natureza. Aliás, que tenhamos perdido de vista o valor social da fruitfulness (em oposição à usefulness), da frutuosidade do conhecimento cujo objetivo é fazer-nos "fugir da ignôrância", é isso mesmo um objeto de reflexão filosófica.
Um segundo traço é, na linha do que já escrevi em outros momentos, que a filosofia pode contribuir, por sua própria natureza, com a tarefa de fazer uma "terapia do debate público" (escrevi sobre isto aqui, em duas partes (parte I e parte II)). Com isso quero dizer que a filosofia opera essencialmente com dois instrumentos essenciais para qualquer discussão que se pretenda racional a saber, a percepção e a clarificação de distinções (desenvolvi um pouco mais sobre isso aqui) e o trabalho sobre problemas. Sobre este último vale a pena desenvolver um pouco mais.
Uma das razões pelas quais as pessoas têm suspeita ou dificuldade para com a filosofia é porque elas falham em ver que a filosofia, assim como todas as áreas do saber, lida com problemas. Note que "lidar" com problemas não significa tão somente respondê-los. Inicialmente, a "simples" tarefa de fixar um problema, de delimitar e apontar a existência de um problema onde em geral não se vê nenhum é uma das atividades mais essenciais da razão humana. Para além disso, lidar com problemas também pode significar dissolver ou reformular um problema previamente fixado, mostrando ou que o pretenso problema é um falso problema, isto é, não há ali algo como um problema a ser solucionado ou, então, que tal formulação está incompleta ou imprecisa. E, por fim, lidar com problemas também pode significar o oferecimento de respostas. Duas coisas importantes devem ser notadas. A primeira é que a história da filosofia é, de certo modo, a história do trabalho de "lidar" com problemas das formas que apontei acima e a segunda é que responder a problemas é somente 1/3 do que significa a tarefa de lidar com problemas.
A centralidade do problema para a filosofia é tão premente que o filósofo americano Richard Rorty define, em um texto belíssimo (The Philosopher as Expert), a filosofia como um "diálogo histórico perene sobre a legitimidade dos problemas". E a questão sobre o debate permanente sobre a legitimidade dos problemas desvela um segundo ponto especialmente relevante.
John Kekes, logo no início de seu The Nature of Philosophical Problems, oferece a melhor descrição que conheço sobre esse fenômeno:
O tempo passa, as circunstâncias mudam, nosso conhecimento e experiência crescem, mas continuamos a enfrentar os mesmos problemas sobre como devemos viver. Aqui estão eles mais uma vez: O que torna a vida boa? Existe uma ordem providencial? O que seria um estado político ideal? Podemos controlar como vivemos? O que podemos razoavelmente esperar? Existem absolutos morais? As soluções, se as tivéssemos, ajudariam a tornar nossas vidas melhores, mas as muitas propostas entram em conflito e excluem umas às outras. Existem boas razões para algumas das soluções conflitantes, e assim elas continuam a perdurar, mas também não faltam razões boas contra elas. E assim seus conflitos persistiram em formas mutáveis ao longo dos séculos, inclusive o atual.
A dificuldade não é que nos faltam os fatos relevantes. Eles estão disponíveis e conhecidos há muito tempo. A dificuldade é que as respostas são baseadas em avaliações conflitantes do significado de fatos familiares. (KEKES, J. The nature of philosophical problems, 1)
O que Kekes está dizendo é difícil de ser superestimado. Ao contrário do que intuitivamente pensamos quando estamos diante de problemas sociais, econômicos, políticos ou morais - e em sentido oposto ao que certa perspectiva contemporânea insiste em nos fazer crer - a sede dos nossos conflitos não está na ausência de dados, informações ou mesmo de conhecimento, mas no problema filosófico da pergunta sobre quais dados, informações e conhecimentos devem ser privilegiados - ou tidos como mais legítimos - sobre outros e por quais razões. Em geral, o problema de fundo não é a ausência de uma resposta, mas dada uma pluralidade de respostas justificáveis, qual das perspectivas de solução deve ser escolhida em detrimento das outras e por quê. Ora, é precisamente por isso que uma gama não desprezível dos nossos problemas públicos tem uma natureza filosófica que ultrapassa a simples recensão das evidências.
Portanto, se Rorty e Kekes estão corretos, uma contribuição incontornável da filosofia em sua dimensão pública extramuros, isto é, para além do trabalho esotérico dos debates entre os especialistas, reside em uma terapia do debate público entendida como a distinção, explicitação e análise dos problemas e das razões oferecidas para suas soluções. Parafraseando o título da obra magna de Robert Brandom, tornar explícita a enorme gama de pressupostos, comprometimentos, consequências, incompatibilidades e contradições que compõem nossos problemas e nossas pretensas respostas em nosso eterno “jogo de pedir e dar razões” uns para os outros.
É claro que, a longo prazo, uma filosofia pública entendida como essa empreitada que acabei de descrever nos leva àqueles problemas mais preciosistas e abstratos que preocupam os filósofos quando eles estão entre seus pares. Mas que essa sofisticação esteja no horizonte não é um problema, senão que é uma confirmação da importância de um exame de tipo filosófico sobre as questões públicas.
Em um ensaio de 1949, o físico americano Percy W. Bridgman escreveu que as pessoas que menos se preocupavam com a questão sobre o que seria o método científico eram, justamente, os cientistas. Esse tipo de questão seria, segundo ele, levantada por aqueles que não praticam a ciência. Assim, para os verdadeiros praticantes, a definição de “ciência” e de “método científico” poderia ser respondida pela observação do quê e do como os cientistas efetivamente fazem: “In short, science is what scientists do”. Pode parecer frustrante para uma conclusão, mas de fato penso que uma boa - se não a melhor - resposta à pergunta “o que é filosofia pública?” pode ser encontrada no próprio exercício de abordar os problemas não-especializados pelo prisma das ferramentas da análise e da reflexão filosóficas.
Disso se segue que o conceito e a tarefa da filosofia pública ficam mais claros à medida em que mais filósofos dedicarem-se a tal empreitada. Não há algo como uma boa definição de filosofia pública - se por uma boa definição entendemos uma definição exaustiva - porque a filosofia pública deve ser parte do jogo de pedir e dar razões sobre a legitimidade das diversas questões, a consistência das distintas respostas e a fixação de novos problemas. E todo esse processo se desenrola segundo novas demandas ao longo do tempo. O filósofo, quando faz o que se pode chamar de filosofia pública, deve ser mais um player no espaço lógico de razões, no qual também estão a imprensa, os políticos, os líderes religiosos, os juristas, os artistas e todos que dele quiserem tomar parte. Como se pode ver, uma consequência disso é que o filósofo nem é um salvador das grandes virtudes democráticas, como quer Nussbaum, nem precisa ser apenas um produtor de conhecimento no interior da academia. Como indicam Kekes e Rorty, ao filósofo pode caber a tarefa de sopesar as perspectivas, os problemas e as respostas e tornar explícitos os compromissos e consequências das diversas posições nos debates públicos. E isso pode ser feito nos jornais, nas redes sociais, no substack ou onde mais houver possibilidade de fazê-lo. Afinal, a presença da filosofia na ágora não apenas não é uma “invenção” contemporânea, senão que está intimamente ligada à sua própria natureza.
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Top! São por essas razões explicitadas no texto que eu escolhi justamente a filosofia prática como linha de pesquisa, pois seu objeto de estudo é algo que precisa resultar em uma ação, e uma ação tem no meu ver uma conexão muito bem mais forte com o público do que as teorias.
Que baita texto! Salvo para futuras releituras