Se há um conjunto de problemas que importuna tanto filósofos (da ciência, mas não só) e pessoas não especialmente treinadas, isto é, o glorioso “senso comum”, aquele que costumeiramente chamamos de “problema da demarcação” certamente faz parte dele. Isso porque o problema da demarcação, isto é, o problema que consiste em oferecer uma resposta à pergunta “há critérios que nos permitem delimitar uma fronteira entre o que é ciência e o que não é?” não possui apenas uma importância teorética, de clarificação conceitual, mas, como se viu de maneira incontornável durante a pandemia de COVID-19, por exemplo, mas é composto por uma dimensão prática. Seja para distinguir entre procedimentos médicos ou fármacos aceitáveis ou não ou, ainda, para decidir se cartas psicografadas podem ter estatuto de prova no tribunal do júri, parece que poder discernir entre o que aceitamos ou recusamos sob o adjetivo de “científico” desempenha papel fundamental para além da filosofia.
No entanto, não obstante a profundidade e a miríade de facetas do problema, um dos maiores filósofos da ciência, Larry Laudan, falecido no ano passado, em um paper já clássico, afirma:
From Plato to Popper, philosophers have sought to identify those epistemic features which mark off science from other sorts of belief and activity.
Nonetheless, it seems pretty clear that philosophy has largely failed to deliver the relevant goods. Whatever the specific strengths and deficiencies of the numerous well-known efforts at demarcation (several of which will be discussed below), it is probably fair to say that there is no demarcation line between science and non-science, or between science and pseudo-science, which would win assent from a majority of philosophers. Nor is there one which should win acceptance from philosophers or anyone else;
Assim, se Laudan estiver correto, o Graal da demarcação não apenas não existe como, regulativamente, não deve existir.
Contudo, mesmo deixando de lado especificamente a dimensão mais profunda do problema epistemológico, para questões atuais relativas ao negacionismo cientifico em termos mais contemporâneos - como em movimentos antivacina ou terraplanistas - não parece suficiente adotar a famigerada asserção de Percy Bridgman: “science is what scientists do”. Mesmo que, parafraseando a taxonomia de David Chalmers, tenhamos dificuldades com o hard problem da demarcação, não parece ser pragmaticamente possível ignorar solenemente ao menos uma versão soft do mesmo problema sob o peso de simplesmente borrarmos a intuição básica que nos permite navegar com algum critério mínimo por entre crenças que competem todas por nossa adesão prática.
Por isso, ainda que o objetivo do autor seja atacar exatamente aquele juízo de Laudan apontado acima sobre o problema hard, creio que algumas ideias do filósofo sueco Sven Ove Hansson (no seu capítulo no excelente livro organizado por Massimo Pigliucci sobre o tema) podem nos ajudar ainda que seja para não falarmos bobagens no twitter.
Quero começar com a definição de ciência oferecida por Hansson:
Science (in the broad sense) is the practice that provides us with the most reliable (i.e., epistemically most warranted) statements that can be made, at the time being, on subject matter covered by the community of knowledge disciplines (i.e., on nature, ourselves as human beings, our societies, our physical constructions, and our thought constructions). (70)
Devo dizer que gosto bastante da definição de Hansson. Ela contém os dois aspectos que julgo importantes em qualquer definição de ciência seriamente construída. O primeiro é a ideia de que a ciência é uma prática, uma atividade (primordialmente intelectual, mas não só) cujo objetivo é, fundamentalmente, produzir as declarações epistemicamente mais confiáveis que podemos fazer sobre um determinado tema. Nesse primeiro ponto, a ênfase recai sobre a relação entre declarações “mais confiáveis” porque “epistemicamente” mais confiáveis. Dito de outro modo, a confiabilidade das asserções científicas advém de sua tentativa de oferecer as melhores justificativas. Assim, em última análise, a ciência é uma atividade intelectual de produção de justificativas. É precisamente por isso que o próprio Hansson ressalta que, nesse sentido (no sentido amplo, como consta no início da citação), “ciência” não diz respeito tão somente às ciências naturais e deve incluir aquelas disciplinas que têm como objetivo fornecer os mesmos “produtos”; isso inclui a sociologia, a história e a filosofia. Donde se segue também que a tarefa de fornecer as afirmações epistemicamente mais confiáveis não é tarefa exclusiva das ciências naturais. Fica para um próximo post explorar os sentidos nos quais a filosofia pode ser ciência e como ela se relaciona com as demais.
O segundo ponto, que por mais incrível que possa parecer ainda causa problemas para um grande contingente de pessoas (e a pandemia de COVID-19 nos deu exemplos claros e recentes disso) é o que Hansson consigna na expressão “at the time being”, que pode ser traduzida por “no momento atual” ou, ainda, “num dado momento”. Não é objetivo da ciência fornecer as afirmações epistemicamente mais confiáveis de uma vez por todas ou, ainda, de maneira incorrigível para sempre. A tarefa de oferecer tais afirmações epistemicamente mais confiáveis sobre o mundo depende, como dissemos, da qualidade das justificativas que podem ser aduzidas e, portanto, de sua disponibilidade num dado momento. Por isso, retomando algo que disse aqui, o argumento de que seria racionalmente justificável, ceteris paribus, não seguir a atual afirmação epistemicamente mais confiável porque, no futuro, outras podem surgir até em sentido contrário da primeira, não se sustenta. A possibilidade de que novas afirmações (até em sentido contrário às anteriores) surjam a partir de novas justificativas no futuro não enfraquece a qualidade das justificativas e das afirmações no momento atual.
Essa dinâmica é própria à ciência e esvaziá-la como “aposta”, “chute” ou “retórica” é simplesmente não compreendê-la. Caso muito diferente do que acontecem com as afirmações que vão ao largo de tal mecânica, das quais tratarei no próximo post (clique aqui para a parte II).
Referências:
Bridgman, P.W. On “scientific method.” Teach Sci 6:23, 1949.
Hansson, S. O. “Defining Pseudoscience and Science” in PIGLIUCCI, M.; BOUDRY, M. Philosophy of Pseudoscience: Reconsidering the Demarcation Problem. [s.l.] : University of Chicago Press, 2013.
Laudan, L. “The demise of demarcation problem”, 1983.