O "praticante ideal" de Sellars (e algo sobre o ensino superior)
Semana passada voltei às aulas na universidade e, como todo semestre, revisito em mim mesmo as razões que me movem e os objetivos que busco na docência. Embora também seja pesquisador - e a investigação filosófica sistemática me encanta e me realiza -, sou essencialmente um professor. E pensar sobre o cansado ensino universitário causa-me sempre um misto de excitação e tédio. Por um lado sou um romântico inveterado que verdadeiramente está convencido de que desde o surgimento da instituição universidade, ainda não chegamos nem perto de inventar nada que possa, nem remotamente, rivalizar com o que ela deveria ser. Por outro, no entanto, a distância entre o que ela deveria e o que ela tem se tornado no mundo todo, parece aumentar cada dia mais. Já escrevi um pouco sobre isso aqui, a partir de Oakeshott e também aqui, a partir de Ortega y Gasset. Mas neste texto quero expor algo sobre uma passagem que desde que a li novamente, há uns 4 ou 5 meses, tem me voltado à mente toda vez em que penso ou falo sobre a universidade.
O excerto em questão é de um texto que já li muitas vezes e do qual já utilizei fragmentos em diversas aulas. No entanto, este trecho em particular não me havia chamado tanto a atenção quanto da última vez: trata-se do já clássico “Philosophy and the Scientific Image of Man” - que figura já no meu primeiro post aqui no substack:
Ora, as disciplinas especiais conhecem bem seus próprios assuntos, e cada uma aprende a fazê-lo no processo de descobrir verdades sobre seu próprio campo de estudo. Mas cada disciplina especial também deve ter uma noção de como seu domínio se encaixa no panorama geral. Essa noção, em muitos casos, se resume a pouco mais do que o "saber intuitivamente" que todos nós possuímos. Além disso, o especialista deve ter uma noção de como não apenas seu assunto, mas também os métodos e princípios de seu pensamento sobre ele se encaixam no cenário intelectual. Assim, o historiador reflete não apenas sobre os eventos históricos em si, mas também sobre o que significa pensar historicamente. Faz parte de seu trabalho refletir sobre seu próprio pensamento—seus objetivos, seus critérios, suas armadilhas. Ao lidar com questões históricas, ele deve enfrentar e responder a perguntas que não são, elas mesmas, em um sentido primário, questões históricas. Mas ele lida com essas perguntas à medida que surgem na tentativa de responder a questões especificamente históricas.
A reflexão sobre qualquer disciplina especial pode levar rapidamente à conclusão de que o praticante ideal dessa disciplina veria seu assunto especial e seu pensamento sobre ele à luz de uma compreensão reflexiva do cenário intelectual como um todo. (Sellars, Philosophy and the Scientific Image of Man)
O texto segue com as reflexões de Sellars sobre as relações entre filosofia e as ciências especiais, mas o que me interessa aqui é a figura do “praticante ideal”. Há entre nós, no ensino superior - e me refiro tanto a alunos quanto a grande parte dos professores -, uma tal perda de uma consciência apropriada sobre o que significa a universidade como instituição e, portanto, sobre quais são seus reais objetivos. Sobretudo em um país como o Brasil, a universidade é vista, com raras exceções, como uma extensão mais ou menos sofisticada da escola cujo único propósito é ensinar um ofício. Inclusive por questões burocráticas e legais, algumas profissões só podem ser exercidas com um diploma de curso superior, o que faz com que a universidade seja somente um gate keeper, uma cancela ou obstáculo a ser vencido para que se possa exercer tal ofício. Contudo, não é muito difícil de ver - tanto abstratamente quanto na prática - que tal concepção acerca do ensino superior esvazia completamente sua importância e sua relevância social, com inúmeras consequências.
A primeira delas é que bastaria removermos os entraves burocráticos sobre aquelas profissões, o ensino superior não seria mais necessário. É, aliás, o que se vê em áreas - como tecnologia, por exemplo - que não possuem tal organização. Para grande parte dos trabalhadores de TI, o curso superior não apenas é dispensável como é até um entrave. Uma perda de tempo. Ora, se a única justificativa do ensino superior é a necessidade do seu diploma, é fácil ver que seu valor e seus objetivos ficam subordinados a valores externos. Basta que esses mudem para que a universidade simplesmente deixe de existir.
O segundo é que, ainda que o ensino superior pretenda se justificar pela tarefa de ensinar um ofício, ele em nada se diferenciaria de um curso técnico, ficando, de saída, com a desvantagem de fazer a mesma coisa que faz aquele, mas sendo mais caro e mais moroso. Ou seja, compreender a universidade como meio de produção de novos expertos em tais ou tais ofícios é, literalmente, a morte do ensino superior.
Fica claro que nenhuma dessas perspectivas serve para justificar o sentido de “superioridade” do ensino superior. Ele simplesmente não seria superior em nada.
Ora, mas então em quê consistiria a superioridade da universidade sobre outras formas de aprendizado em geral e até do aprendizado por imitação, típico do ensino de um ofício? Respondo: tal superioridade reside precisamente no fato de que a universidade tem como objetivo formar praticantes ideais dos mais diversos ofícios. E assim como afirma Sellars, o praticante ideal não é apenas o “operador” daquela profissão, que apenas põe em marcha ou em prática seus conhecimentos específicos, mas, como aponta o filósofo americano no excerto acima, deve ser capaz de compreender como seus conhecimentos técnicos específicos se relacionam com o “panorama mais geral” da cultura humana e no “cenário intelectual” das produções do espírito humano como um todo. É precisamente por isso que na universidade o ensino específico deve sempre vir acompanhado de uma formação que conceda ferramentas e espaço de reflexão acerca de como os conhecimentos técnicos específicos de cada área se relacionam com a totalidade da produção humana de sentido. Dito de outro modo, um praticante ideal da medicina não pode ser apenas alguém extremamente proficiente em seus conhecimentos técnicos terapêuticos; ao contrário, ele jamais atingirá tal grau de “idealidade” como aquele que, além de possuir aqueles conhecimentos típicos, for capaz de refletir sobre as questões morais, sociais, existenciais e históricas da medicina, além de conseguir conectar estes àqueles. Da mesma forma como alguém simplesmente “bom” em uma área será sempre menos preferível do que alguém “excelente”, alguém “excelente” será sempre menos desejável do que o “ideal”.
Não é algo muito diferente disso o que diz o filósofo alemão do século XVIII-XIX, Friedrich Schelling. Em uma conferência para ingressantes na universidade, Schelling afirma:
O conhecimento do todo orgânico de todas as ciências deve, portanto, preceder uma educação particular focada em uma única especialidade. Quem se dedica a uma ciência específica deve, antes de tudo, estar familiarizado com o lugar que ela ocupa nesse todo, o espírito particular que a anima e o tipo de formação que a conecta à estrutura harmoniosa do todo — em outras palavras, deve saber como relacionar essa ciência específica a si mesmo para pensar não como um escravo, mas como um homem livre, no espírito do todo. (SCHELLING, Lectures on the Method of Academic Study, 87)
Portanto, uma universidade que abdica de formar “praticantes ideais”, desiste precisamente da sua marca de superioridade. E já não pode lamentar sua obsolescência ou seu ocaso.


