Sobre uma noção empiricamente ingênua de ciência
E algo sobre a relação entre filosofia e medicina
“A ciência moderna não nasceu no campo da generalização de observações empíricas, mas no terreno de uma análise capaz de abstrações, isto é, capaz de deixar o nível do sentido comum; das qualidades sensíveis e da experiência imediata. O instrumento principal que tornou possível a revolução conceitual da física, como é notório, foi a matematização da física. E para os seus desenvolvimentos deram contribuições decisivas Galilei, Pascal, Huygens, Newton e Leibniz.”
ROSSI, Paolo. O Nascimento da Ciência Moderna na Europa
Alguns meses atrás, numa discussão sobre a formação médica, um colega professor (médico), sem nenhuma intenção pejorativa, mas articulando aquilo que provavelmente é mesmo sua visão sobre como as coisas funcionam, questionava em alto e bom som o que talvez ele enxergue como um excesso da presença de humanidades no currículo com um argumento que ia na seguinte direção: questões bioéticas, por exemplo, pressupõem a prática da medicina e, portanto, só fazem sentido depois de uma boa formação técnica específica. Em outras palavras, um médico só terá que se haver com problemas morais, tais como aborto, eutanásia, manipulação genética etc., quando for capaz de exercer o ofício, donde se segue que não faria sentido expor tanto os alunos às humanidades, sobretudo durante a formação pré-técnica.
Antes de passar às minhas considerações, o disclaimer óbvio, mas necessário: não se faz um médico sem as competências e habilidades terapêuticas. Aliás, como sempre reforço, médicos são semi-cientistas, inclusive: não podem ser exclusivamente cientistas porque devem ter preocupação terapêutica da qual um cientista stricto sensu está dispensado. É possível entender tudo sobre anatomia, fisiologia, bioquímica e semiologia e não ser médico, isto é, não empregar tais conhecimentos terapeuticamente. Assim, não está em jogo aqui a importância da formação técnica específica para uma profissão que repousa sobre o conhecimento técnico específico, seja um médico, seja um engenheiro. Isso é um ponto pacífico. Também não vou me dedicar à importância de uma educação liberal (já o fiz aqui). Dito isso,
A ideia do meu colega não é apenas acerca das relações entre medicina e humanidades, mas veicula uma concepção sobre como funciona o conhecimento (empírico) e a ciência em geral. Nas linhas daquilo que o famigerado Alan Chalmers chama de “indutivismo ingênuo”, a ideia é que o conhecimento experimental brota, diferentemente do que vai na epígrafe deste texto, da simples coleção de observações empíricas cujos produtos são as articulações ou explicações conceituais desse amontoado de observações. Isso significa que quadros conceituais são cronologicamente posteriores às observações que, justamente por isso, seriam conceitualmente neutras. O problema dessa ideia, que descreve razoavelmente a concepção do senso comum, é que como já mostraram inúmeros sujeitos - de Kant a Sellars - a ideia de que uma afetação dos sentidos pura e simples pode não apenas ser tida como uma “observação” ou um “experimento” sem depender de um quadro conceitual mínimo, mas que ela fundamente ou justifique um tipo de conhecimento normativo (como esperamos da ciência), é simplesmente falsa. Gosto de dizer aos alunos que alguém aleatório abandonado no interior de um laboratório de química, com todos os insumos e equipamentos, jamais produziria nenhum experimento ou uma observação que valesse o nome, sem que tivesse condições de fazer referência a um quadro teórico. Dito ainda de outro modo, não existe observação conceitualmente neutra. Como lembra Sellars - em sua famosa crítica ao “mito do dado” - ou uma representação não é conceitual e proposicionalmente pura, ou jamais poderia servir de fundamento a proposições. Dizer de uma mancha que ela “é vermelha” já é, como lembra Sellars, identificá-la como caso singular de uma categoria de objetos com um tal atributo (i.e. ser vermelho) e, portanto, estabelecer uma relação de caso particular (ou token) de um tipo. É poder reconhecer que A=B é diferente de A=A. E não se faz isso prescindindo de um quadro conceitual. Assim, dizer que um médico (ou engenheiro, ou advogado) só precisaria entrar em contato com determinados quadros conceituais após ter se familiarizado com casos particulares, como se pode ver, é um contrassenso;
Mas para além desse problema mais geral, há algo mais específico que é ainda mais importante para a questão em pauta. E para isso, permito-me citar a melhor definição de medicina que conheço, de um dos melhores livros sobre filosofia da medicina, de um sujeito brilhante, o médico Kazem Sadegh-Zadeh:
Medicine is a science and practice of intervention, manipulation, and control concerned with curing sick people, caring for sick people, preventing maladies, and promoting health. What necessitates this task, is the human suffering that results from maladies, and the desire for remedy and relief. Medicine serves this human need by attempting to lessen suffering that human beings evaluate as bad, and to restore and augment well-being that human beings evaluate as good. On this account, medicine as health care ispracticed morality insofar as it acts against what is bad, and promoteswhat is good, for human beings. And insofar as it seeks rules of action toward achieving those goals and strives continually to improve the quality and efficacy of these rules, i.e., as clinical research, it belongs to normative ethics. (SADEGH-ZADEH, 2012, p. ix)
Basicamente o que Sadegh-Zadeh está dizendo, em uma percepção extremamente aguçada, é que a própria medicina só existe a partir do momento em que seres humanos avaliam certos estados de coisas como bons e outros como maus, alguns como desejáveis e outros como indesejáveis. Isso significa que, tomados em si mesmos, fenômenos como uma infecção bacteriana ou um câncer, do ponto de vista estritamente biológico, não são nem bons nem ruins (de fato, para a bactéria é ótimo), mas só passam a ser salientes para nós porque nós os julgamos como indesejáveis, ao passo que julgamos a saúde e a ausência de dor e sofrimento como desejáveis. Não existiria medicina em absoluto se nós não fizéssemos juízos de tipo moral - sobre coisas boas e ruins - sobre fenômenos biológicos (ou anatômicos ou fisiológicos). Dito de outro modo, a própria existência da medicina depende de um juízo de tipo moral e daquilo que consideramos desejável ou indesejável, devendo ser ou fomentado ou combatido. Isso é ainda mais evidente pela variação histórica e cultural sobre aquilo que consideramos normal ou patológico (lembre-se da histeria, da masturbação como doença, do homossexualismo, das variações anatômicas vistas sob o ponto de vista estético etc.). No caso específico da medicina, o problema epistemológico do ponto 1 é ainda mais agravado pelo que digo aqui no ponto 2. Mas aí teríamos que pressupor justamente que o meu colega tivesse tido contato com essas questões num momento oportuno durante sua formação…
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Se você gostou deste texto, talvez goste deste outro sobre filosofia e medicina, bem como deste aqui sobre filosofia e ciência a partir de Cassirer e destes dois sobre ciência e pseudo-ciência (parte I e parte II).
Caro Gabriel, primeiramente: excelente texto. Minha questão é bastante secundária ao assunto do texto, mas, com o perdão da digressão, devo perguntar: o tratamento de Sellars ao Mito do Dado, bem como a condição a priori transcendental de precedência conceitual a toda representação da experiência já antes desenvolvida por Kant, representa uma pedra no sapato para a redução fenomenológica de Husserl do fenômeno à sua pura doação?